Martin BUBER.
Eu e Tu. São Paulo: Centauro Editora, 2009, Primeira parte [trechos]
O
mundo é duplo para o homem, segundo a dualidade de sua atitude. A atitude do
homem é dupla de acordo com a dualidade das palavras-princípio que ele pode proferir.
As
palavras-princípio não são vocábulos isolados mas pares de vocábulos.
Uma
palavra-princípio é o par Eu-Tu. A outra é o par Eu-Isso no qual, sem que seja
alterada a palavra-princípio, pode-se substituir Isso por Ele ou Ela.
Deste
modo, o Eu do homem é também duplo.
*
A
palavra-princípio Eu-Isso não pode jamais ser proferida pelo ser em sua
totalidade.
Não
há Eu em si, mas apenas o Eu da palavra-princípio Eu-Tu e o Eu da
palavra-princípio Eu-Isso.
Quando
o homem diz Eu, ele quer dizer um dos dois. O Eu ao qual se refere está
presente quando ele diz Eu. Do mesmo modo quando ele profere Tu ou Isso, o Eu
de uma ou outra palavra-princípio está presente.
Ser
Eu, ou proferir a palavra Eu são uma só e mesma coisa. Proferir Eu ou proferir
uma das palavras-princípio são uma ou a mesma coisa.
Aquele
que profere uma palavra-princípio penetra nela e aí permanece.
*
A
vida do ser humano não se restringe apenas ao âmbito dos verbos transitivos.
Ela não se limita somente às atividades que têm algo por objeto. Eu percebo
alguma coisa. Eu experimento alguma coisa, ou represento alguma coisa, eu quero
alguma coisa, ou sinto alguma coisa, eu penso em alguma coisa. A vida do ser
humano não consiste unicamente nisto ou em algo semelhante.
Tudo
isso e o que se assemelha a isso fundam o domínio do Isso.
O
reino do Tu tem, porém, outro fundamento.
*
Aquele
que diz Tu não tem coisa alguma por objeto. Pois, onde há uma coisa há também
outra coisa; cada Isso é limitado por outro Isso; o Isso só existe na medida em
que é limitado por outro Isso. Na medida em que se profere o Tu, coisa alguma
existe. O Tu não se confina a nada.
Quem
diz Tu não possui coisa alguma, não possui nada. Ele permanece em relação.
*
O
mundo como experiência diz respeito à palavra-princípio Eu-Isso. A
palavra-princípio Eu-Tu fundamenta o mundo da relação.
*
O homem
transformado em Eu que pronuncia o “Eu-Isso” coloca-se diante das coisas em vez
de confrontar-se com elas no fluxo da ação recíproca. Curvado sobre cada uma
delas, com uma lupa objetivante que olha de perto, ou ordenando-as num panorama
através de um telescópio objetivante de um olhar distante, ele as isola ao
considerá-las, ou ele as agrupa sem sentimento algum de universalidade. [...]. O
Tu se manifesta como aquele que simultaneamente exerce e recebe a ação, sem
estar no entanto, inserido numa cadeia de causalidades, pois, na sua ação
recíproca com o Eu, ele é o princípio e o fim do evento da relação. Eis uma
verdade fundamental do mundo humano: somente o Isso pode ser ordenado. As
coisas não são classificáveis senão na medida em que, deixando de ser nosso Tu,
se transformam em nosso Isso. O Tu não conhece nenhum sistema de coordenadas. [...]
E com toda a seriedade da verdade, ouça: o homem não pode viver sem o Isso, mas
aquele que vive somente com o Isso não é homem.
COMENTÁRIO [Régis de Moraes. Filosofia do diálogo. Campinas: Alínea Editora, 2011, p. 60-65]:
Entre os humanos, ensina-nos Buber,
o eu-isso tanto apresenta uma
dimensão natural e mesmo necessária, quanto inclui aspectos claramente patológicos.
Dada a distância originária, o movimento de se pôr em relação primeiro me
mostra o outro humano como uma realidade radicada (em suas peculiaridades
pessoais nascidas de uma história de vida, em seus gostos, seus valores e seu
temperamento), ao passo, que, sou para mim uma realidade radical. “Eu estou em mim, eu sou. De modo
que é normal e até necessário que as relações interpessoais tenham como
pré-história o relacionamento eu-isso” (Morais, 1995, p. 64). No entanto, o
filósofo em estudo é incisivo ao ensinar que ninguém pode viver sem o isso, mas que quem vive apenas com o isso não chega a ser humano.
[...] Aceite-se
que as relações inter-humanas tenham uma pré-história de eu-isso; mas elas só se engradecerão em humanidade se,
enriquecendo-se, se erguerem até o nível da relação eu-tu. Ultrapassados os relacionamentos objetais, poder-se-á
atingir o elevado nível da “vida com os homens”, naquele momento de graça pelo
próprio Martin Buber denominado “encontro humano”. [...].
A relação eu-tu estabelece algumas exigências:
a)
a exigência de imediatez, pois que
toda mediação será obstáculo, uma vez que o tu
se dá na presença e não na representação; b) exigência de reciprocidade, uma vez que a responsabilidade é o nome
ético da reciprocidade; c) exigência da
presença, já que o tu não se dá
na representação (Morais, 1995, p. 66).
O eu da relação eu-isso
difere do eu da relação eu-tu. O primeiro eu apenas observa e estabelece juízos, enquanto o segundo,
diferentemente de ser uma coisa em si mesma, é algo que acontece na comunhão
relacional do “encontro humano”. E há nisto uma dinâmica especial, pois o tu é evanescente por não ser
estaticamente objetivado; de modo que há a exigência de uma busca constante do
relacionamento eu-tu. [...]. De modo
que, por exemplo, entre duas pessoas, o que realmente conta é se a relação eu-tu predomina significativamente;
noutras palavras: é ingênuo e errôneo esperar-se que haja relacionamento eu-tu de tempo integral. De qualquer
forma, nessa relação ocorre necessariamente que o tu seja o outro polo do nosso eu,
pois este só pode ser confirmado na plenitude de sua humanidade por um tu. Tal confirmação está, é claro, no fato
da “exigência de reciprocidade”. [...].
O individualismo é a mais cerrada
solidão; enquanto que o coletivismo de corte burocrático é outra dura
modalidade de solidão. Só mesmo o movimento de entrar-se em relação autêntica
permite a redescoberta do sentido profundo de existir convivendo. Uma vez mais
observa Buber, no livro Qué es el hombre?
(1983, p. 146):
O
fato fundamental da existência humana não é o indivíduo como tal e nem a
coletividade como tal. Ambas essas coisas consideradas em si mesmas, não passam
de ser formidáveis abstrações. O indivíduo é um fato da existência na medida em
que entra em relações vivas com outros indivíduos. [...]. O fato fundamental da
existência humana é o homem com o homem.