quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Texto complementar 1


15º Carta: O processo de libertação: a luta dos seres humanos para a realização do ser mais
[...]
Desde os inícios, até mesmo no tempo mais indeciso, quase nebuloso, em que começava a visualizar o processo de libertação, jamais pude entendê-lo como expressão da luta individual dos homens e das mulheres, mas, por outro lado, sempre recusei a inteligência dele como fenômeno puramente social no qual se diluísse o indivíduo, manifestação pura da classe.
Pelo contrário, complexo e plural, o processo de libertação se envolve com quantas dimensões marquem fundamentalmente o ser humano: a classe, o sexo, a raça, a cultura.
Da mesma forma como jamais pude aceitar que a luta de libertação pudesse ser restringida à briga de indivíduos, jamais aceitei também que ela pudesse ser reduzida à luta das mulheres contra os homens, dos negros contra os brancos. A luta é dos seres humanos pelo ser mais. Pela superação dos obstáculos à real humanização de todos. Pela criação de condições estruturais que tornem possível o ensaio de uma sociedade mais democrática. A luta não é, como disse na carta anterior, e vale a pena repetir, por uma sociedade democrática a tal ponto perfeita que suprimisse, de uma vez por todas, o machismo, o racismo e a exploração de classe. A luta é pela criação de uma sociedade civil capaz de falar, de protestar e sempre disposta a lutar pela realização da justiça. A luta, afinal, não é pela santificação de homens e de mulheres, mas pelo reconhecimento deles e delas como gente finita, inacabada, histórica, por isso mesmo capaz de, negando a bondade, tornar-se malvada; mas, reconhecendo a bondade, tornar-se amorosa e justa.
É bem verdade que na luta de libertação não é possível esquecer ou minimizar aspectos específicos que caracterizam as relações mulher-homem, negro-branco, classe trabalhadora-classe dirigente. Mas, para mim, o reconhecimento dessas especificidades não é suficiente para que nenhum dos grupos de contradição se converta no focus do processo e esgote a importância dos outros. No fundo, não posso reduzir a luta das mulheres à luta de classe, a luta contra a opressão da branquitude à luta de classes também, mas, por outro lado, não posso prescindir da compreensão do papel das classes sociais, mesmo numa sociedade tão complexa quanto a norte-americana, para o meu entendimento do racismo e do machismo. Para as próprias táticas de minha luta.
Às vezes me criticam porque, dizem, eu não dei atenção às situações em que, ambíguos, os indivíduos se experimentam como oprimidos e, em seguida, como opressores. Em primeiro lugar, devo dizer que me tenho referido a essa ambiguidade, até com insistência, em diferentes textos, quando discuto as virtudes dos educadores e das educadoras progressistas. Entre essas virtudes saliento a coerência que, exigindo de nós humildade, sublinha no nosso comportamento a contradição de nossa opção verbalizada. Fazemos um discurso progressista e temos uma prática reacionária. É o caso, por exemplo, de uma professora que, lutando contra a discriminação machista, tem, contudo uma prática pedagógica opressiva. Na sua tarefa pedagógica de orientar estudantes pós-graduados na produção de suas teses se comporta de tal maneira autoritariamente que pouco espaço para criar e para se aventurar intelectualmente lhes resta. Esta professora hipotética, mas muito fácil de ser encontrada, é a um tempo oprimida e a outro opressora. É uma incoerente. A sua luta contra a violência machista perde a força e vira um blábláblá inconsequente. Para a autenticidade de sua luta ela necessita superar a incoerência e, assim, ultrapassando o blábláblá, diminuir a distância entre o que diz e o que faz. [...]

Paulo Freire. Cartas a Cristina

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