quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Texto complementar 2


Martin BUBER. Eu e Tu. São Paulo: Centauro Editora, 2009, Primeira parte [trechos]

O mundo é duplo para o homem, segundo a dualidade de sua atitude. A atitude do homem é dupla de acordo com a dualidade das palavras-princípio que ele pode proferir.
As palavras-princípio não são vocábulos isolados mas pares de vocábulos.
Uma palavra-princípio é o par Eu-Tu. A outra é o par Eu-Isso no qual, sem que seja alterada a palavra-princípio, pode-se substituir Isso por Ele ou Ela.
Deste modo, o Eu do homem é também duplo.
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A palavra-princípio Eu-Isso não pode jamais ser proferida pelo ser em sua totalidade.
Não há Eu em si, mas apenas o Eu da palavra-princípio Eu-Tu e o Eu da palavra-princípio Eu-Isso.
Quando o homem diz Eu, ele quer dizer um dos dois. O Eu ao qual se refere está presente quando ele diz Eu. Do mesmo modo quando ele profere Tu ou Isso, o Eu de uma ou outra palavra-princípio está presente.
Ser Eu, ou proferir a palavra Eu são uma só e mesma coisa. Proferir Eu ou proferir uma das palavras-princípio são uma ou a mesma coisa.
Aquele que profere uma palavra-princípio penetra nela e aí permanece.
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A vida do ser humano não se restringe apenas ao âmbito dos verbos transitivos. Ela não se limita somente às atividades que têm algo por objeto. Eu percebo alguma coisa. Eu experimento alguma coisa, ou represento alguma coisa, eu quero alguma coisa, ou sinto alguma coisa, eu penso em alguma coisa. A vida do ser humano não consiste unicamente nisto ou em algo semelhante.
Tudo isso e o que se assemelha a isso fundam o domínio do Isso.
O reino do Tu tem, porém, outro fundamento.
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Aquele que diz Tu não tem coisa alguma por objeto. Pois, onde há uma coisa há também outra coisa; cada Isso é limitado por outro Isso; o Isso só existe na medida em que é limitado por outro Isso. Na medida em que se profere o Tu, coisa alguma existe. O Tu não se confina a nada.
Quem diz Tu não possui coisa alguma, não possui nada. Ele permanece em relação.
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O mundo como experiência diz respeito à palavra-princípio Eu-Isso. A palavra-princípio Eu-Tu fundamenta o mundo da relação.
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O homem transformado em Eu que pronuncia o “Eu-Isso” coloca-se diante das coisas em vez de confrontar-se com elas no fluxo da ação recíproca. Curvado sobre cada uma delas, com uma lupa objetivante que olha de perto, ou ordenando-as num panorama através de um telescópio objetivante de um olhar distante, ele as isola ao considerá-las, ou ele as agrupa sem sentimento algum de universalidade. [...]. O Tu se manifesta como aquele que simultaneamente exerce e recebe a ação, sem estar no entanto, inserido numa cadeia de causalidades, pois, na sua ação recíproca com o Eu, ele é o princípio e o fim do evento da relação. Eis uma verdade fundamental do mundo humano: somente o Isso pode ser ordenado. As coisas não são classificáveis senão na medida em que, deixando de ser nosso Tu, se transformam em nosso Isso. O Tu não conhece nenhum sistema de coordenadas. [...] E com toda a seriedade da verdade, ouça: o homem não pode viver sem o Isso, mas aquele que vive somente com o Isso não é homem.


COMENTÁRIO [Régis de Moraes. Filosofia do diálogo. Campinas: Alínea Editora, 2011, p. 60-65]:
            Entre os humanos, ensina-nos Buber, o eu-isso tanto apresenta uma dimensão natural e mesmo necessária, quanto inclui aspectos claramente patológicos. Dada a distância originária, o movimento de se pôr em relação primeiro me mostra o outro humano como uma realidade radicada (em suas peculiaridades pessoais nascidas de uma história de vida, em seus gostos, seus valores e seu temperamento), ao passo, que, sou para mim uma realidade radical. “Eu estou em mim, eu sou. De modo que é normal e até necessário que as relações interpessoais tenham como pré-história o relacionamento eu-isso (Morais, 1995, p. 64). No entanto, o filósofo em estudo é incisivo ao ensinar que ninguém pode viver sem o isso, mas que quem vive apenas com o isso não chega a ser humano.
[...] Aceite-se que as relações inter-humanas tenham uma pré-história de eu-isso; mas elas só se engradecerão em humanidade se, enriquecendo-se, se erguerem até o nível da relação eu-tu. Ultrapassados os relacionamentos objetais, poder-se-á atingir o elevado nível da “vida com os homens”, naquele momento de graça pelo próprio Martin Buber denominado “encontro humano”. [...].
            A relação eu-tu estabelece algumas exigências:

a) a exigência de imediatez, pois que toda mediação será obstáculo, uma vez que o tu se dá na presença e não na representação; b) exigência de reciprocidade, uma vez que a responsabilidade é o nome ético da reciprocidade; c) exigência da presença, já que o tu não se dá na representação (Morais, 1995, p. 66).

            O eu da relação eu-isso difere do eu da relação eu-tu. O primeiro eu apenas observa e estabelece juízos, enquanto o segundo, diferentemente de ser uma coisa em si mesma, é algo que acontece na comunhão relacional do “encontro humano”. E há nisto uma dinâmica especial, pois o tu é evanescente por não ser estaticamente objetivado; de modo que há a exigência de uma busca constante do relacionamento eu-tu. [...]. De modo que, por exemplo, entre duas pessoas, o que realmente conta é se a relação eu-tu predomina significativamente; noutras palavras: é ingênuo e errôneo esperar-se que haja relacionamento eu-tu de tempo integral. De qualquer forma, nessa relação ocorre necessariamente que o tu seja o outro polo do nosso eu, pois este só pode ser confirmado na plenitude de sua humanidade por um tu. Tal confirmação está, é claro, no fato da “exigência de reciprocidade”. [...].
            O individualismo é a mais cerrada solidão; enquanto que o coletivismo de corte burocrático é outra dura modalidade de solidão. Só mesmo o movimento de entrar-se em relação autêntica permite a redescoberta do sentido profundo de existir convivendo. Uma vez mais observa Buber, no livro Qué es el hombre? (1983, p. 146):

O fato fundamental da existência humana não é o indivíduo como tal e nem a coletividade como tal. Ambas essas coisas consideradas em si mesmas, não passam de ser formidáveis abstrações. O indivíduo é um fato da existência na medida em que entra em relações vivas com outros indivíduos. [...]. O fato fundamental da existência humana é o homem com o homem.

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